sábado, 29 de novembro de 2008

Ironia das minorias

Como homem, branco, heterossexual, com mais de 60 anos, solteiro, e ainda por cima fumante, sinto-me como minoria das minorias e sem as proteções que a maioria das minorias hoje desfruta no Brasil.
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Pena que meus afro-ascendentes não tenham me legado melanina suficiente para ter cotas na universidade e na administração pública, e talvez até reivindicar uma bolsa-quilombola. Pena que os meus ascendentes portugueses, espanhóis e austríacos não sejam tão próximos para me proporcionar um passaporte europeu. Sou um autêntico vira-lata, como o das filhas do Obama. Para piorar, não faço parte de partidos políticos, sindicatos, igrejas, seitas, clubes ou torcidas organizadas. É dura a vida de minoria.
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A simples opção pela independência já pode ser malvista, como individualista, alienada, egoísta, não-solidária, neoliberal e até mesmo de direita. O ato banal de fumar um cigarro, mesmo em ambiente aberto, está virando uma falha de caráter. Alguém tão fraco, tão burro e sem força de vontade, que não consegue abandonar um veneno que o mata.
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O coitado é condenado unanimemente por sedentários, hipertensos, cardíacos, coléricos, devoradores de junk food, que bebem, trabalham em condições estressantes, tomam remédios para dormir ou para acordar, mas não fumam.
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Tenho um amigo que faz caminhadas e natação todos os dias, alimenta-se saudavelmente e está em excelente forma. Quando o elogiam, responde com um risinho cínico: é só para poder fumar.
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Meus pais estão com 88 anos cada um. E continuam fumando e bebendo. Pouquinho, é verdade, mas todo dia, e gozam de boa saúde, graças a Deus e aos mistérios da vida. Espero que esta herança maldita — já nasci com vontade de fumar — também contribua para maior resistência do meu organismo aos danos da nicotina. Pelo menos não bebo, o que me coloca em mais uma minoria brasileira.
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Uma rara alegria em minha vida minoritária tem sido a fila preferencial de idosos nos caóticos aeroportos brasileiros. Que tranqüilidade, que rapidez, que delícia, imagino como devem se sentir os políticos e as minorias que desfrutam tantos outros privilégios.
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NELSON MOTTA
Texto publicado no Globo de hoje.

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